Sou professora há mais de 20 anos. Atualmente na rede pública de São Vicente-SP. Tive a honra de trabalhar com o Profº Paulo Freire na SME de São Paulo.
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Entrevista com Charlot

ENTREVISTA

>> Durante suas pesquisas sobre a relação dos jovens brasileiros com o saber, o que lhe chamou a atenção na escola aqui no Brasil?
BC>> Numa comparação com o meu país, a França, vejo que lá a escola é uma instituição mais forte do que no Brasil, uma instituição na qual o aluno tem o direito de pertencer para aprender coisas de que ele goste ou não. Mas o que mais me chama a atenção no caso brasileiro é a importância que é dada ao lado afetivo do saber. Existe aqui uma relação muito forte entre o saber e o corpo: o saber deve ter efeitos emocionais para ter valor. E isso acontece tanto na cabeça do aluno como na da professora. Acho que por isso ela tem uma grande dificuldade em deixar de ser "tia". Isso traz um problema: se a tia não gosta do aluno, ou se o aluno não gosta da tia, ele não vai aprender.

>> Se o senhor fosse professor numa classe de adolescentes brasileiros, qual seria a sua preocupação hoje, na hora de planejar suas aulas?
BC>> Me preocuparia com a questão da auto-estima. O adolescente é frágil e tem uma imagem frágil de si mesmo. O saber deve permitir que ele reforce essa auto-imagem, ao invés de feri-la ainda mais como muitas vezes acontece. Porque quando o saber é uma fonte de sofrimento pessoal psicológico na sua auto-estima, você tende a desvalorizar esse saber que te desvaloriza.

>> O que é aprender, segundo sua visão?
BC>> É algo que se manifesta de formas heterogêneas e que é bem mais amplo do que adquirir um saber. É, por um lado, apropriar-se de um enunciado que só tem existência através das palavras. Mas é também dominar determinadas formas de se relacionar com os outros e consigo: a se apaixonar, a ter ciúmes... Isso tudo se aprende, não é natural. O resultado da aprendizagem, portanto, não precisa vir necessariamente na forma de um enunciado verbal. Como saber se uma pessoa aprendeu a nadar? O resultado vem inscrito no seu próprio corpo, na maneira como ela se movimenta na água. Essas formas diferentes de aprender muitas vezes concorrem entre si no mundo do aluno. O desafio da escola é fazer com que o que se aprende lá possa também permitir ao adolescente se construir enquanto sujeito. Isso nem sempre acontece, principalmente nos meios populares.

>> Por que alguns alunos têm mais vontade de aprender do que outros?
BC>> Toda pessoa tem uma atividade intelectual, mas o fato de mobilizar ou não essa potencialidade depende do sentido que ela confere àquilo que está ouvindo e à situação que está vivenciando. Isso varia, em primeiro lugar, com a história singular de cada aluno. Ou seja, os motivos que despertam o desejo de aprender numa criança podem não ter nenhum efeito sobre outra, que tem uma história pessoal diferente. Além disso, há uma explicação de origem sociológica: sabe-se que há uma postura diferente frente à escola entre as crianças de classes médias e de meios populares. Não sabemos muito bem como a classe influencia, mas é inegável que ela tenha um peso importante.

>> A classe social é um fator determinante na aprendizagem?
BC>> Não há uma relação automática de causalidade. O que sabemos é que existe uma correlação estatística entre a posição social do aluno e o sucesso ou o fracasso escolar. Mas não devemos esquecer de que existem crianças de meios populares que são bem sucedidas na escola. E crianças de classe média que encontram dificuldade. Nas minhas pesquisas, venho tentando descobrir por que o risco de mau êxito é maior entre alunos de classes populares. E, além disso, por que alguns deles se dão bem, a despeito das condições desfavoráveis. Essa segunda questão é muito importante, porque pode nos dizer em que direção atuar para superar o fracasso escolar.

>> Como o professor pode interferir na relação dos alunos com o saber, de modo a despertar o desejo de aprender nos mais desmotivados?
BC>>
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que o que vai determinar a aprendizagem é a atividade intelectual do próprio aluno. O professor é importante, mas pelo efeito que ele pode ter nessa atividade. Do mesmo modo, os aspectos institucionais são importantes pelos seus efeitos sobre a prática do professor e, por tabela, sobre a atividade intelectual do aluno.
O professor deve entender que a lógica do aluno, principalmente o de classe popular, é muitas vezes diferente da lógica da escola. Nesta, é o estudante que vai realizar uma atividade intelectual para adquirir saber. Na lógica do jovem, é o professor quem vai ter esse trabalho. Seu papel é apenas sentar-se na sala e aguardar que lhe passem esses conhecimentos. O professor tem de mudar essa situação, construindo o aluno na criança, no adolescente. Esse é um trabalho ao mesmo tempo terrível e apaixonante, que não sei se é a "professora tia" que pode fazer. Acho que deveria ser a "professora professora", a profissional.

>> Nessa tentativa de motivar os alunos, alguns professores tentam mil coisas. Até que ponto isso interfere na relação com o saber?
BC>>
Ao invés de falar em motivação, prefiro falar em mobilização. Há uma diferença importante entre essas duas palavras. Motiva-se alguém de fora, mas se mobiliza de dentro. Muitas vezes, constrói-se com esse discurso de motivação uma pedagogia muito artificial, em que o professor ensina a fazer um bolo para dar aula de Matemática. Isso só terá algum efeito se o dispositivo usado fizer algum sentido para o ensino. Mas normalmente não é isso que acontece. Uma motivação externa em geral cria um sentido enviesado. O que o aluno quer ao fazer um bolo? Quer comer o bolo. Ele não está nem aí com a Matemática. Essas motivações de fora são muito artificiais.
É importante compreender que a mobilização é interna e supõe um desejo do próprio aluno. Mobilizar é fazer uso de si, para si. E isso representa uma diferença fundamental.

>> Como aproximar o "aprender na escola" do "aprender na vida"?
BC>> Essas duas formas são diferentes, mas não deveria haver uma barreira tão grande entre elas. O estudo da história de Portugal no século XIX, por exemplo, deve fazer sentido para que o aluno entenda o que é a vida no Brasil agora e o que está fazendo aqui. A escravidão, as batalhas, as conquistas... Isso tudo deveria produzir uma reflexão para que os estudantes entendessem melhor quem eles são. Dessa forma existirão pontes entre o ensino acadêmico e o que se vive. E a aula ganhará muito mais sentido.

>> Como deveria ser a escola ideal?
BC>> Aquela que questiona, que primeiro traz os questionamentos e só depois o conhecimento. Que mobiliza a atividade intelectual e dá sentido aos saberes. Que é respeitada como instituição. Que estimula a auto-estima, a imagem que os alunos têm de si mesmos. Aquela, por fim, em que o saber é também fonte de prazer - o que não significa que não há esforço, pois o prazer mais importante para um indivíduo é se sentir inteligente.

>> Qual a sua opinião sobre o sistema de ciclos?
BC >> O princípio da escola ciclada é mais justo do que o da seriada. O problema é que pode haver contradições entre esse projeto político e as práticas pedagógicas da sua implantação. Na França, temos há dez anos o sistema de ciclos e quase ninguém percebeu a mudança. Por que isso acontece? Porque muitas vezes o sistema de séries permanece camuflado nas escolas cicladas. O que temos de pensar é em que práticas pedagógicas são necessárias para concretizar efetivamente o projeto político dos ciclos.

>> E o que o senhor pensa sobre a repetência?
BC>> A repetência é ruim, quanto a isso não tenho dúvidas. Mas também acho que, na prática, um aluno que passa sem saber acaba atrapalhando a si e aos colegas. Mais importante do que ficar discutindo sobre a repetência é refletir sobre as práticas que permitem que todos os alunos sejam bem sucedidos.

>> Como fazer um projeto pedagógico?
BC >> Na base de um projeto pedagógico é preciso haver sempre uma escolha de valores, uma representação do mundo, do ser humano e da sociedade. Definida essa dimensão política, é preciso traduzi-la para a especificidade da escola, para a esfera pedagógica. E aí é importante lembrar que a escola não é só o seu projeto, mas também o que está fazendo na prática, os métodos que são efetivamente utilizados, o que os alunos estão aprendendo... Proponho, aos professores, que questionem seus atos pedagógicos. Por exemplo: devo prosseguir a aula se 5 dos meus 25 alunos não estão entendendo? E quando for apenas um? Essas escolhas não são apenas atos pedagógicos, há um significado político por trás delas.

>> O que é preciso para construir uma escola democrática?
BC >> Que cada profissional envolvido com a educação reflita sobre seus atos políticos e pedagógicos. São as nossas contradições que devemos enfrentar se quisermos construir uma escola verdadeiramente democrática.

Bernard Charlot é professor de Ciências da Educação na Universidade Paris VIII.
Dedica-se ao estudo das relações com o saber, principalmente a relação dos alunos de classes populares com o saber escolar. Ele esteve no país durante o Fórum Mundial de Educação, onde concedeu esta entrevista exclusiva ao site do CRE:

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